sábado, julho 05, 2008



O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro

segunda-feira, junho 02, 2008



Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios

As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços

A praia é lis e longa sob o vento
Saturada de espaços e maresia

E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.

Sophia de Mello Breyner, Praia

terça-feira, maio 27, 2008



Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabarem nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras

Ruy Belo, Nau dos corvos



O MAR

Ondas que descansam no seu gesto nupcial
abrem-se caem
amorosamente sobre os próprios lábios
e a areia
ancas verdes violetas na violência viva
rumor do ilimite na gravidez da água
sussurros gritos minerais inércia magnífica
volúpia de agonia movimentos de amor
morte em cada onda sublevação inaugural
abre-se o corpo que ama na consciência nua
e o corpo é o instante nunca mais e sempre
ó seios e nuvens que na areia se despenha
mó vento anterior ao vento ó cabeças espumosas
ó silêncio sobre o estrépito de amorosas explosões
ó eternidade do mar ensimesmado unânime
em amor e desamor de anónimos amplexos
múltiplo e uno nas suas baixelas cintilante
só mar ó presença ondulada do infinito
ó retorno incessante da paixão frigidíssima
ó violenta indolência sempre longínqua sempre ausente
ó catedral profunda que desmoronando-se permanece!

António Ramos Rosa, Facilidade do Ar
Lisboa, Caminho, 1990

segunda-feira, maio 19, 2008



Este é o rio que liga as margens dos meus dias...

DV

quinta-feira, maio 01, 2008


Fernand Léger, Os Construtores

Maio maduro Maio quem te pintou

quarta-feira, abril 30, 2008



De onde vêm estes inquisidores, censores, justiceiros por um dia, professores de bem fazer e outros correctores de erros?
Quem são eles para se arrogarem no direito de espiolhar a vida dos outros e delas disporem; para emitirem, sem terem dúvidas, tantos pareceres e julgamentos definitivos?
...
Guy Foissy, L'Homme sur le Parapet du Pont

TEATRO DE BOLSO, TAS, Setúbal
de quinta a sábado, 21.30

quarta-feira, abril 09, 2008



Nas vastas águas que as remadas medem.
tranquila a noite está adormecida.
Deslisa o barco, sem que se conheça
que o espaço ou tempo existe noutra vida,
em que os barcos naufragam, e nas praias
há cascos arruinados que apodrecem,
a desfazer-se ao sol, ao vento, à chuva,
e cujos nomes se não vêem já.
Ao que singrando vai, a noite esconde o nome.

Jorge de Sena, Nas vastas águas...
Agosto 1967
in Visão Perpétua

sexta-feira, março 21, 2008



Todos bebem o seu vinho,
De qualquer modo - mesmo os que não bebem:
Porque também é vinho o que concebem
Para esquecer o caminho.
A poesia é o meu vinho;
- Que importa o que os outros bebem?

Carlos Queiroz, EX - LIBRIS

sexta-feira, março 14, 2008



Creio que o sentido da vida é a busca da felicidade.
Dalai Lama

"O líder espiritual tibetano – acusado por Pequim de ser um dirigente separatista, apesar de este garantir que abdicou das exigências iniciais de independência – pediu aos responsáveis chineses “para renunciarem ao uso da força” para reprimir as manifestações e a “porem fim ao ressentimento persistente através do diálogo com o povo tibetano”.

In Publico

terça-feira, março 11, 2008



Morreu um poeta da pintura.
Rogério Ribeiro, até sempre.

terça-feira, fevereiro 19, 2008


E agora Cuba?

«O dever mais urgente da nossa grandiosa América é mostrar-se como é, unida em alma e em intento, vencedora veloz de um passado sufocante».

José Martí

quinta-feira, fevereiro 14, 2008


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

Álvaro de Campos

quarta-feira, fevereiro 13, 2008



Timor está ferido. Ai Timor...

O que pode o markting político fazer para mudar a América?
É possível uma sociedade melhor. O Mundo precisa.

Yes, we can!

segunda-feira, fevereiro 11, 2008


WORLD PRESS PHOTO 2007

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão, Homem, Poemas Escolhidos


sábado, janeiro 26, 2008



As ideias petrificadas face à maravilhosa indiferença
de um mundo apaixonado
de um mundo reencontrado
de um mundo indiscutível e inexplicado
de um mundo sem bem-viver mas cheio de alegria de viver
de um mundo sóbrio e ébrio
de um mundo triste e alegre
terno e cruel
real e surreal
aterrorizante e divertido
nocturno e diurno
vulgar e insólito
belo como tudo.

Jacques Prévert (1900 - 1977), Lanterne magique de Picasso

Um poeta eternamente jovem que deixou marcas indeléveis nos trilhos que percorri.
DV

segunda-feira, janeiro 21, 2008



Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...Intervalo...Nada.De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim, croché...

Bernardo Soares

segunda-feira, janeiro 07, 2008


(...)
Em toda a cidade que dorme e respira, eu luto com a dispneia e escrevo. Em toda a cidade que repousa e se esquece, na Avenida dos Combatentes eu debato-me contra a morte e escrevo diante da minha pequena tribo que dorme. A tribo dorme: a Lina mostra um punho fechado (ideias avançadas terá a mocinha?); o rapaz está de costas e quase destapado (parece um Cupido cansado; na larga queixada, porém, uma expressão terrena, máscula - a cara camponesa e rude do avô Matias); o bebé ressona ou balbucia qualquer uma esperança que só ele entende. Ela, a Irene, a minha pequena deusa de tranças loiras, encosta-se a mim e calada cálida repousa cansada. Sou um deus grego ! Fauno serôdio, Pan sem flauta, Orfeu decaído de quantas desilusões e frios cinismos, um Vulcano cornudo às ordens de Vocências, do meu espaldar senhorial contemplo o rebanho provisório que inventei, patriarca e profeta do meu próprio futuro. E receio, oh como receio, que os deuses a valer me castiguem! E desejo, oh como desejo, que chegue a manhã e eu esteja respirando ainda pelos foles dos pulmões que o enfizema vai dilatando minguando a elasticidade; que o meu coração eia! sus! bata ainda quando, num quintal que não sei, perto, o galo canta.
(...)
"Comunidade", Contraponto, 1964
Luiz Pacheco 1925-2007
Escritor, crítico literário, polemista maldito, fundador da editora Contraponto e sobretudo homem livre.

quarta-feira, janeiro 02, 2008


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, Há palavras que nos beijam