terça-feira, junho 26, 2007














O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)

Alberto Caiero, O Guardador de Rebanhos

terça-feira, junho 19, 2007
















Cão

Cão passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moido de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado

domingo, junho 17, 2007


















Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga, Livro de Horas

terça-feira, junho 12, 2007














O mar deixou o Alentejo
onde trouxe canções de oiro
mas volta a matar saudades
nas ondas do trigo loiro.

Se fores ao Alentejo,
vai vai vai vai vai.
Não te esqueças, dá-lhe um beijo,
ai ai ai ai.

Nas capelas e nos montes
há sorrisos de brancura
onde fala a voz de Deus
na voz da cal e da alvura.

Sobe o sol e abrasa a terra
a fecundar as espigas
à sombra das azinheiras
na dolência das cantigas.

Por lonjuras e planuras,
oh solidão, solidão,
eu quero paz no trabalho
p'ra poder ganhar o pão.

Popular do Alentejo, Se Fores ao Alentejo

sábado, junho 09, 2007













Beira Alta, fotografia de Sérgio Jacques

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos

terça-feira, junho 05, 2007


















Não podemos falar de Aveiro e das suas gentes, sem referirmos o vulto do pensamento democrático e resistente antifascista, médico, crítico e ensaísta, Mário Sacramento.

Nasceu em Ílhavo em 1920, tendo cursado medicina na Universidade de Coimbra. Pelo exercício da sua actividade profissional, desde cedo procurou Aveiro, aqui se radicando em 1957. Humanista de coração e seguindo uma linha ideológica marxista, desde cedo se afirmou como opositor à governação salazarista, advindo-lhe daí várias prisões e prejuízos sociais e económicos. Figura de militância no Partido Comunista Português, esteve sempre presente (vivo ou morto) nos Congressos de Oposição Democrática realizados em Aveiro. Morreu em 1969. Temido pela força dos seus escritos que tantas vezes foram de difícil publicação pela acção controladora da PIDE, ainda assim deixou importantes contributos literários que, em grande parte, só viram a luz do dia após a sua morte. Desses contributos salientam-se: Na ante- câmara de Eça de Queirós (1943); Fernando Pessoa - poeta da hora absurda (1953); Fernando Namora - o Homem e a obra (1967); Há uma estética Neo-realista? (1968); Carta Testamento (1973); Diário (1975); Palavras de Mário Sacramento (1984)(...)

Serviços de documentação da Universidade de Aveiro

Este é parte do conteúdo da sua carta-testamento, cujas palavras definem bem o seu enorme carácter.

(...)Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais.

Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!

Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!(...)

Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!


Mário Sacramento
, Caramulo, Pousada de S. Lourenço, 7 de Abril de 1967

















É reconfortante regressar à região que me viu nascer e perceber que os meus conterrâneos desbravam caminhos para a tornar cada vez mais bonita.
Aveiro é hoje uma cidade de tradição e futuro.