domingo, setembro 03, 2006













REVOLUÇÃO DE ABRIL
Da génese do cansaço à reforma das mentalidades

Aos 15 anos podemos perceber que o mundo pode mudar de um dia para o outro. Isso aconteceu comigo, às 8 horas da manhã do dia 25 de Abril, quando liguei a rádio e ouvi as primeiras notícias do dia. Nessa manhã, fui como habitualmente para o liceu mas apenas tive a disciplina de História com o professor a interromper constantemente a aula para colar no ouvido o pequeno rádio que levara consigo. Lá fora, no pátio alunos e professores trocavam impressões sobre os acontecimentos do dia, coisa nunca vista. Ao início da tarde, no pátio fronteiriço ao edifício da PIDE-DGS, no Bairro Salgado, uma grande coluna de fumo que se erguia nos céus denunciava a queima apressada de papéis. Numa das janelas da minha casa que ficava cerca de trinta metros da sede desta tenebrosa polícia, assistia apreensivo à azáfama dos seus funcionários. A meio da tarde saíram no carro cinzento da instituição e nunca mais voltaram. À noite um grupo de populares arrombava as portas do edifício e ocupava as instalações. Os soldados vieram depois e tomaram conta da situação. A revolução estava na rua e dentro de mim.
Aos 15 anos não se consegue ficar fora duma revolução, tem de se fazer parte dela. O meu país estava em festa e isso era contagiante. Participei no movimento popular e estudantil, estive nas barricadas, militei no Partido Comunista, fiz serviço cívico, ajudei na construção duma escola primária, trabalhei numa cooperativa agrícola, declamei poesia da liberdade, fiz teatro de amadores, organizei debates, encontros, festivais, pintei timidamente quadros que nunca exibi, escrevi poesia que nunca declamei e ficção que nunca editei, dediquei-me ao teatro e ao ensino da expressão dramática, tive dois filhos maravilhosos. Se não fosse a revolução seria possível ter feito tudo isto e ser feliz?
Não se pode fazer o branqueamento das conquistas de Abril. O movimento popular, a descolonização, o poder autárquico, as conquistas dos trabalhadores, o acesso generalizado ao ensino e à fruição cultural, só foram possíveis devido à revolução política operada em Abril de 1974.
Numa eloquente palestra sobre o 25 de Abril realizada na Escola Superior de Educação de Setúbal em 2004, o professor Fernando Rosas afirmava que qualquer revolução surge da génese do cansaço. Nunca tinha pensado nessa perspectiva mas, de facto, o 25 de Abril surge após 40 anos de um regime cinzento e autoritário.
Mas ao fim de 32 anos de olhares cruzados sobre a revolução de Abril, podemos concluir que houve uma verdadeira reforma de mentalidades? Quem, como eu, teve o privilégio de viver tão intensamente a conquista da liberdade e participar na espontânea vontade colectiva de realizar o impossível, sabe que muita coisa ainda está por fazer.

As revoluções suscitam o questionar permanente das mentalidades. Mas ainda há quem tenha medo dessa profunda mudança e queira que a nossa democracia se traduza numa lenta e suave metamorfose, terreno propício ao regresso do cansaço.

DV