quarta-feira, dezembro 27, 2006




















Natal

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa

quinta-feira, dezembro 07, 2006




















E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio e a difícil arte da melancolia

Al Berto

sábado, dezembro 02, 2006


















Paisagem


Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.


Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores, elástica e dura.
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.


Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento,
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.


Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.


Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


Sophia de Mello Breyner Andresen















As ondas

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, novembro 26, 2006













lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny


Não vou esquecer Mário, até sempre...




















O poeta que me trouxe para a poesia nasceu há 100 anos.
As suas palavras ficaram gravadas no tempo e eu vou continuar a lê-las.

Lição sobre a água

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

António Gedeão, Poesias completas

quinta-feira, novembro 02, 2006















Todos os dias morrem inocentes no Iraque, desde a fatídica invasão dos grandes senhores da guerra. Os iraquianos são, hoje, um povo profundamente dividido e ferido na sua dignidade.
Meses antes escrevi, para um semanário regional de Setúbal, um texto que se revelou um presságio do que agora se assiste naquele país. Falo da mentira institucional, que tem justificado esta e outras guerras de conveniência, a que não devemos ficar alheios.

A GRANDE MENTIRA

...vale a pena pensar se não andamos todos enganados com as verdadeiras razões que levaram os aliados a invadir o Iraque.
Os pressupostos que levaram a esta gigantesca intervenção não estarão adulterados?
Invadir um país soberano, com o objectivo de combater o terrorismo e afastar um tirano do poder instalando, a qualquer preço, a democracia, não respeita os valores mais básicos da própria democracia. A democracia não se impõe, conquista-se.
Então que valores estão em jogo? Que legitimidade há em tudo isto?
Numa guerra é o vencedor que tem razão. O mais forte tem sempre razão, no Iraque, na América e em todo o lado. A “razão” dos mais fortes silencia a dos mais fracos. É precisamente isso que me incomoda. Incomoda-me saber que os protestos contra esta barbárie, de homens, mulheres e crianças de todas as raças, credos e ideologias, são silenciados ou ignorados pelos seus governantes.
Em nome de quê e de quem?
Tenta-se explicar com as estratégias militares as chamadas “baixas aceitáveis” desta guerra e não se respeita o valor fundamental que é a própria vida. Um marine americano referiu em pleno palco de guerra que lamentava tal mortandade mas era pago para executar o seu trabalho. No sul do Iraque um colega seu afirmava, a outro repórter, que era apenas «dois pés a caminhar para o norte». Talvez tivesse mais consciência do que este conflito representa para si e para a Humanidade. Parece que ninguém está interessado nesta guerra. Só Bush parece apostado em continuar, impelido pela missão “divina” de salvar o mundo. Com a ajuda de Blair criou uma grande mentira e quer que todos participemos nela. Ninguém acredita que esta guerra acabe com o terrorismo. Poderá mesmo, extremar ainda mais os fundamentalismos. Além de tudo, como afirma Mia Couto na “Carta ao Presidente Bush” publicada no jornal Público a 27 de Março - "O Iraque não é Sadam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos".
Os iraquianos vão pagar com milhares de vidas e milhões de dólares do seu petróleo, esta gigantesca arma de destruição maciça. O ditador será derrotado, mas não se apagará na consciência deste povo o ódio pelos que um dia invadiram a sua terra e lhes feriram a dignidade.
Vivemos na fronteira entre a verdade e a mentira e a guerra torna ainda mais difusa a sua diferença. Como num jogo viciado a batota beneficia o infractor, mas o que é preciso é vencer a todo custo.

...o dramaturgo alemão Tankred Dorst refere: (…) O Homem é imperfeito, comete enganos fatais entra em conflito com as circunstâncias, agarra-se ao poder, é fraco. Enganador e ingénuo, compraz-se na sua ignorância e está enjoado com Deus.

2003-03-30
DV

domingo, setembro 03, 2006













REVOLUÇÃO DE ABRIL
Da génese do cansaço à reforma das mentalidades

Aos 15 anos podemos perceber que o mundo pode mudar de um dia para o outro. Isso aconteceu comigo, às 8 horas da manhã do dia 25 de Abril, quando liguei a rádio e ouvi as primeiras notícias do dia. Nessa manhã, fui como habitualmente para o liceu mas apenas tive a disciplina de História com o professor a interromper constantemente a aula para colar no ouvido o pequeno rádio que levara consigo. Lá fora, no pátio alunos e professores trocavam impressões sobre os acontecimentos do dia, coisa nunca vista. Ao início da tarde, no pátio fronteiriço ao edifício da PIDE-DGS, no Bairro Salgado, uma grande coluna de fumo que se erguia nos céus denunciava a queima apressada de papéis. Numa das janelas da minha casa que ficava cerca de trinta metros da sede desta tenebrosa polícia, assistia apreensivo à azáfama dos seus funcionários. A meio da tarde saíram no carro cinzento da instituição e nunca mais voltaram. À noite um grupo de populares arrombava as portas do edifício e ocupava as instalações. Os soldados vieram depois e tomaram conta da situação. A revolução estava na rua e dentro de mim.
Aos 15 anos não se consegue ficar fora duma revolução, tem de se fazer parte dela. O meu país estava em festa e isso era contagiante. Participei no movimento popular e estudantil, estive nas barricadas, militei no Partido Comunista, fiz serviço cívico, ajudei na construção duma escola primária, trabalhei numa cooperativa agrícola, declamei poesia da liberdade, fiz teatro de amadores, organizei debates, encontros, festivais, pintei timidamente quadros que nunca exibi, escrevi poesia que nunca declamei e ficção que nunca editei, dediquei-me ao teatro e ao ensino da expressão dramática, tive dois filhos maravilhosos. Se não fosse a revolução seria possível ter feito tudo isto e ser feliz?
Não se pode fazer o branqueamento das conquistas de Abril. O movimento popular, a descolonização, o poder autárquico, as conquistas dos trabalhadores, o acesso generalizado ao ensino e à fruição cultural, só foram possíveis devido à revolução política operada em Abril de 1974.
Numa eloquente palestra sobre o 25 de Abril realizada na Escola Superior de Educação de Setúbal em 2004, o professor Fernando Rosas afirmava que qualquer revolução surge da génese do cansaço. Nunca tinha pensado nessa perspectiva mas, de facto, o 25 de Abril surge após 40 anos de um regime cinzento e autoritário.
Mas ao fim de 32 anos de olhares cruzados sobre a revolução de Abril, podemos concluir que houve uma verdadeira reforma de mentalidades? Quem, como eu, teve o privilégio de viver tão intensamente a conquista da liberdade e participar na espontânea vontade colectiva de realizar o impossível, sabe que muita coisa ainda está por fazer.

As revoluções suscitam o questionar permanente das mentalidades. Mas ainda há quem tenha medo dessa profunda mudança e queira que a nossa democracia se traduza numa lenta e suave metamorfose, terreno propício ao regresso do cansaço.

DV

quarta-feira, agosto 30, 2006









O SÉCULO DE TODOS OS MEDOS.


“Poema pouco original do medo”

(…)
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
E tenho medo
Que é justamente
O que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Alexandre O'Neill

Este trecho cáustico do poema de O’Neill não podia ser mais actual e universal. Vivemos numa cultura do medo, que se instala nas nossas vidas, deixando-nos sem resistência e à mercê dos oportunistas. A argumentação faz-se pela força das armas e do dinheiro. Exporta-se o medo para todo o mundo e o mundo tem medo de resistir ao próprio medo.
Este é o século de todos os medos. Assistimos quase diariamente, em directo, à morte de inocentes. Leva-se a guerra a zonas do globo onde viver já é uma tarefa difícil. Evoca-se Deus e a Democracia para matar e destruir. A suspeita provoca, em alguns países, atitudes racistas e xenófobas.
Inventam-se razões para justificar a gradual degradação dos valores humanos e a dignidade dos povos que vivem abaixo do limiar da pobreza. Esta é a pior das crises que vivemos e que este ano tomou proporções verdadeiramente preocupantes para toda a humanidade.
Em nome de quê e de quem?
Sabemos que o medo não tem rosto, é silencioso, impiedoso e propaga-se rapidamente. É mais fácil exercer o poder debaixo da suspeita e do medo, porque fragiliza os que ainda têm voz e cega mais os ignorantes.
Só a esperança e o optimismo podem derrotar o medo e evitar que quase todos cheguemos “a ratos”.

DV

quarta-feira, junho 28, 2006















"Estamos fora da vida, dentro dela: «é a vida!...» É esta mistura confusa de transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito."
José Gil