sábado, dezembro 29, 2007



Caminhante, são tuas pegadas
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar se faz o caminho,
e ao voltar o olhar para trás
vê-se a estrada que nunca
se há de tornar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
apenas trilhas sobre o mar.

António Machado

terça-feira, dezembro 18, 2007



Quando estamos cansados
Deitamos o corpo
E adormecemos
Às vezes não
Procuramos outra mão
Outros olhos
Que nos limpem a fadiga
E evitem o sono
Que nos vem antigo
Quando estamos cansados
Podemos erguer o corpo
E acordar
E morrer acordados
Sem cansaço

Mário Henrique Leiria, Esclarecimento
Novos Contos do Gin

Um natal solidário e um ano novo mais feliz.

sexta-feira, dezembro 14, 2007



De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
Mas, se num caso a vida se conhece
e noutro caso nos conhece a nós,
por ambos aprendemos que do mundo
se vive o que não passa, ou se não vive
o que passando é só terras e gentes -
-o conhecer, porém, não se conhece nunca.
Apenas resta a escolha: como descobrir
essa experiência inútil. Antes, pois,
correr do mundo as terras e os humanos
que consumir-se alguém ao lado deles sempre.

Jorge de Sena, De correr mundo
in Visão Perpétua
SB 3/10/1972

quarta-feira, dezembro 12, 2007



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

A mudança não apagou da memória a
Troia da minha infãncia...

terça-feira, dezembro 04, 2007



Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.

Que clamor, que clamores mas em silêncio
na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.

Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.
Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.

António Ramos Rosa, Volante Verde - 1986
in Antologia Poética
Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes